segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Abaixo da linha de água

No paquete Vera Cruz viajavam mais de 3000 militares. Os oficiais em primeira classe e os sargentos em 2ª classe. Um camarote de segunda que normalmente teria dois beliches agora tinha quatro. Nada mau.
Partimos de Lisboa em 25 de Abril de 1970... quem diria que quatro anos depois era o dia da Revolução dos Cravos!


Agora para aqueles que viajavam "abaixo da linha de água" a realidade era bem diferente.
Pedrosa, o Trovador do Chiulézi, na sua obra, descreve essa viagem assim:


...
Tinha sido a primeira noite no mar. A pele transpirada, pedia-me o banho matinal estimulante. Era cedo. Após a higiene, fui tomar o pequeno almoço e passeei pelo barco. Não queria crer. Os porões estavam todos aproveitados com beliches improvisados. A diferença entre os soldados que ali dormiam e a minha cama no beliche de 2.ª classe era um abismo. Eles dormiam abaixo do nível do mar, onde se notava muito mais o balancear do paquete. Agora percebia porque é que a viagem, que para mim estava a ser boa, se tornava um pesadelo para eles. Senhores que mandam, pensei, onde está a vossa consciência, se é que a têm? Arrancam-se homens do seio da família, do recato de um dia a dia pacato, transformam-nos em militares e enviam-nos para longe, onde muitos vão dar a vida, em defesa do vosso ponto de vista intransigente e ultrapassado! E como prémio tratam-nos desta
forma? Que mal fizeram eles? Como irão chegar ao fim deste suplício? ...

Ler aqui, texto integral do Diário do Batalhão - Capítulo Sexto


A meio da viagem, fui sargento_dia ao barco cuja missão consistia em percorrer todo o barco com uma equipa de enfermagem e prestar apoio aos passageiros dos porões.
Imaginem uma viagem "abaixo da linha de água", quatro andares lá para o fundo... no meio de caixotes, sacos de trigo e batatas.
Um cheiro nauseabundo, chão vomitado, um calor de abrasar. A única ventilação era a natural... feita pelo poço (abertura na frente do navio) onde descem os contentores...
Se para alguns de nós esta viagem se fazia num Paquete... para aqueles pobres soldados que tinham o azar de ir lá no fundo a viagem deles era na "Nau das Tormentas" !
Eu assisti ao vivo, durante aquele dia... sinto-me na obrigação de prestar este testemunho.

Testemunho de:
Ernesto P. Fernandes
Ex- furriel miliciano sapador do BCaç. 2914

3 comentários:

  1. Podem avaliar o que foi em 1963, a viagem no navio Niassa,sei do que falo pois viajei nos dois.

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  2. No que respeita a viagens de ida e volta, posso considerar-me um previligiado...
    Na verdade, sendo de rendição individual fiz a viagem de ida (Novº 1965) no Paquete Infante D.Henrique, onde eramos trinta e poucos militares no meio de mais de mil passageiros civís, se acaso não fosse uma viagem para a guerra, teria sido um magnífico cruzeiro...
    De regresso a Portugal, paguei a diferença e vim passar o Natal de 1967 num avião da TAP...
    Felizmente essa má experiencia eu não tive...tive outras...

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  3. Boa tarde sou filha do Pedrosa da foto em cima, e queria agradecer a quem se lembrou dele,pois o Ultramar foi uma passagem na vida dele que recodava com muita saudade quando nos contava(familia) como ele dizia "Estórias de Paz da minha guerra e da dos outros".Infelizmente já nos deixou á nove anos.Ele escreveu um livro com este nome o qual ainda nao consegui realizar o desejo dele ! Publicá-lo!!! Eu tenho algumas fotos desta época se acharem interessante poderei facultá-las.Desejo tudo bom e mais uma vez OBRIGADO!
    Carla Pedrosa

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