sábado, 6 de junho de 2009

Henrique Galvão, esteve em Mecula ( 1948 )


No seu livro - Ronda de África, Henrique Galvão escreveu:


O Niassa, também o é — relativamente a uma África mais real, mais verdadeira do que essa que imaginam as pessoas que nunca foram à África. É a Província dos grandes isolamentos e das grandes solidões, das grandes distâncias e dos grandes horizontes. Nenhuma outra dá ao viajante, tão profundamente, a ideia da extensão e profundidade africanas — e em nenhuma outra também a África se mostra mais próxima da África do período lendário, que fez do grande Continente o mais bárbaro armazém de mistérios mundiais.

Em Mupapa encontramos, como uma parede verde, a Serra Mecula. Ergue-se bruscamente na planície, sem ondas de transição que a prometam. É uma corcunda arborizada, de sombras e misté­rios, no alto da qual se estabeleceu, decerto mais por considerações de ordem poética do que por motivos práticos, um posto civil.

Consumimos dez horas, dez longas e fatigantes horas, a subir, sempre a subir, por veredas quase imperceptíveis do gen­tio, a serra de Mecula. E se durante a trepação algum deu ao demo a ideia de lhe chegar ao topo — ninguém deu por mal empregado o esforço, quando se viu no magnífico mirante, daqueles de que se pode dizer que são mirantes sobre o mundo.

Tudo nesta serra recatada e perdida em lonjuras do Niassa se junta para a tornar encantadora: o isolamento quase insular, a deliciosa movimentação do seu relevo, os seus silêncios profundos, uma espécie de virgindade selvagem, difícil, ainda quase inacessível — e, ao mesmo . tempo, os seus quadros frescos, os seus recantos de paraíso europeu, onde não se estranharia encontrar, de repente, uma estrada e automóveis de luxo a rolarem.

A subida é naturalmente difícil. Nada se construiu ou preparou para a facilitar. Há passagens em que temos de servir-nos dos quatro membros, como os bichos. Mas todos os esforços e fadigas são constantemente suavisados pelo encanto do cenário — os vales atulhados de folhas e sombras, janelas entre ramos sobre horizontes azuis, fios de água cantando no silêncio, soleni­dade de penumbras, visões graciosas de antílopes, etc.

O calor é intenso, mesmo sob as ramadas que encobrem o sol por completo — mas a frescura das cores e das penumbras entra pelos olhos e suavisa os ardores da fornalha.

Chegamos ao pico cujo patamar o posto escolheu para sede, às quatro horas da tarde. Marchávamos depois das seis da manhã — isto é, trepávamos, engatinhá­vamos.

E lá no alto — que maravilha... e que desolação!

Que maravilha a dos horizontes!

Tem-se a impressão de que se vê dali uma parte do planeta como se veria do espaço celeste, a milhares de metros da Terra. Uma grande, infinita, planície que se nos afigura lisa como bandeja. E, nessa bandeja os montes dispostos e situados como coisas estra­nhas, móveis, apenas arrumadas para se deslocarem para outros lugares. Não há en­tre eles vales, nem ondas de terreno. Estão ali, puseram-nos ali, como se põem mon­tes de areia ou cascalho num eirado.

Que desolação a presença do homem representante da soberania! Uma casa sórdida, de pau a pique, quase sem cober­tura — e três quase-palhotas igualmente sórdidas, a olharem, pasmadas, para um pau de bandeira nu e torto. Eram a única nota feia, rebarbativa, naquele cabeço de onde se contemplavam maravilhas.

O funcionário que aí presidia — santo homem de cabelos brancos e alma friorenta

— era, desde há dezassete anos, o único habitante branco da Serra Mecula. E du­rante os dezassete anos descera três vezes a povoados de outros brancos. Durante os dezassete anos apenas cinco vezes, incluindo aquela que eu forneci, haviam passado, de fugida, pelo posto, criaturas da sua raça. Não parecia infeliz — mas era evidente que se tinha adaptado à con­dição de solitário e, por consequência, deixara de amar o convívio dos homens. Sentia-se mais perto das estrelas que dos seus semelhantes — e não se queixava — talvez as preferisse. Constava no mundo dos homens que não estava em perfeito juízo — e que, lá no alto, no seu ninho de águias, falava com os astros. Com quem havia de falar? E não é tão natural que se entendesse muito melhor com eles do que com as gentes? Não tenho nenhuma razão objectiva para concluir ou supor que fosse um desiquilibrado. Ao contrário. Apenas verifiquei que era diferente de todos nós — e não para pior.

No Natal anterior o Governador do Niassa, impressionado com a situação deste homem, fizera-o ir à cidade. Rece­beu-o carinhosamente, introduziu-o na sociedade festiva que a quadra amorável reunira, obrigou-a a ver o riso dos homens e a ouvir palavras doces. Mas ele sentiu-se aí mais solitário e desacompanhado do que nos altos da Serra Mecula — e tão deslo­cado que a meio da festa desapareceu. E não parou senão no seu buraco sórdido, no alto de onde se olha para o mundo.

Talvez o seu caso seja muito mais sim­ples do que se julga. Por mim acho natu­ral que uma pessoa simples, de bom gosto, sem tendências mórbidas nem vícios de espírito, prefira contemplar as belas coi­sas que se vêem do alto da Serra Mecula, a ser espectador ou comparsa nas comé­dias dos seus semelhantes, em outros tablados sem cobertura de estrelas nem seduções de horizontes.

Quando lhe perguntei como fora ali ter, respondeu-me simplesmente:— Mandaram-me.

- E porque tem permanecido durante tanto tempo?

- Ninguém pediu para vir para aqui e eu nunca pedi para me ir embora.

Não me atrevi a perguntar-lhe o que sabia da vida e dos costumes das estrelas. (fim de citação)

Texto recolhido do site macua.org - da obra literária de Henrique Galvão - Ronda de África

Sem comentários:

Enviar um comentário